aviso | pedido de desculpas
Estes registros estão sendo enviados com quase um mês de atraso. Poderia colocar a culpa no ritmo intenso de mudança e despedidas, mas a verdade é que estive fugindo de mim mesma.
Minha terapeuta diria (ou pensaria e não me diria nada, mas eu leria em seus olhos e tiraria minhas próprias conclusões, como sempre) que isso reflete um medo interno de enfrentar meus próprios pensamentos. Ela estaria completamente correta. Desviei do assunto o quanto pude até entender que estou boicotando o compromisso que assumi comigo no início do ano, que é enviar uma carta mensal para você contendo um pouco de mim. Bom, antes tarde do que nunca. Aqui vai.
abril
Em um dos últimos dias do quarto mês do ano recebo um email do Governo Australiano. Um rápido aviso oficial de que meu visto está terminando e, por isso, preciso deixar o país até o dia 15 de maio de 2024. O remetente - ‘no-reply-reminder’ - passaria batido não fosse por meu nome completo em letras MAIÚSCULAS no título da mensagem. I am very much aware of my visa cessation, Department of Home Affairs, but I appreciate your concern. Então é isso. Preciso fazer as malas mas não sei por onde começar. Alguma dica de como fazer caber dois anos na bagagem?
Tento fazer o exercício do que responder quando alguém me perguntar sobre o tempo em que vivi no maior país do sul do outro lado do mundo.
Em uma resposta neutra, vou sorrir e dizer que foi incrível. Que a Austrália é mesmo o país das possibilidades e que você consegue encontrar emprego na área de hospitalidade num estalar de dedos e economizar para viajar pelo Sudeste Asiático é mais fácil do que programar uma viagem pela Amazônia. Que as praias australianas têm uma beleza organizada, com piscinas de água natural e guarda-vidas com megafones alertando banhistas que nadam fora do espaço delimitado das bandeiras.
Que há infinitas trilhas e parques nacionais numa só cidade. Que Sydney tem cheiro de jasmim na primavera e que por mais que o céu pareça cair de tanta chuva o sol sempre dá um jeito de aparecer, e o resultado disso é um show de arco-íris de ponta a ponta no horizonte.
Vou dizer que vi cangurus mas não coalas. Que não imaginava encontrar tantos asiáticos em tantos lugares. Tantos que, ao me mesclar entre tailandeses, vietnamitas, chineses, japoneses, coreanos e indonésios, cheguei ao ponto de me irritar com a quantidade de vezes que brasileiros me olharam em choque ao ouvir português saindo da minha boca. Vou frisar o fato de que, graças a essa migração asiática, foi na Austrália que me apaixonei por inari, pho, pad thai, tom yum e congee. E que, graças à migração de latino-americanos e espanhóis, foi na Austrália que eu aprendi a entender e a falar castelhano.
Vou dizer que aprendi muitas habilidades na hospitalidade, entre elas:
Ficar horas e horas de pé sem morrer de dor
Ressuscitar talheres com vinagre e água quente
Dobrar guardanapos de pano de um jeito chique
Contrabandear canapés e outras comidinhas no caminho entre a cozinha e os convidados de um evento vip
E que desenvolvi algumas manias irreparáveis, como dizer ‘behind’ quando estou atrás de alguém em absolutamente todos os lugares. Sim, só sai em inglês. Pode virar os olhos, eu mereço.
Ao escolher a resposta da versão sem cortes, vou respirar fundo e dizer que foi intenso. Tempestades, raios de sol, arco-íris. Que tudo acontece por semana - o salário, o aluguel, a distribuição dos dias de trabalho - e por isso a vida passa muito, muito, MUITO rápido.
Dizem que a Austrália é um desses portais de energia que existem no mundo, que a força aborígene dos primeiros guardiões impacta quem pisa nessas terras. É alguma coisa na água? No ar? Não sei. Vejo esse país como um lugar de mudança e de passagem; o tempo todo tem gente chegando e gente indo embora. Parece fugaz na superfície, mas quando você olha para as camadas e conecta os sotaques, as histórias e as culturas, tudo ganha uma nuance mais complexa.
Não segui o roteiro clássico que os mochileiros fazem quando chegam - a roadtrip até Sunshine Coast, o passeio de barco sobre a grande barreira de corais, a pedra sagrada do deserto. Por outro lado (e por mais brega que isso soe, peço desculpas desde já), passei muito tempo em viagens internas que me levaram a conhecer lugares de mim que precisava acessar. Nesses caminhos, enfrentei trechos de tormenta que foram quase impossíveis de navegar. Mas também descobri águas calmas e cristalinas como o Never Never River, em Bellingen, a ‘terra prometida’ ao norte de New South Wales.
Nesses dois anos, descobri o valor real das amizades. Me conectei com seres humanos preciosos que vou levar comigo para o resto da vida e reforcei meu amor por quem ficou no Brasil - noite pra mim, dia pra você. Eu chorava de cá, você me acolhia daí. Temporadas de podcasts no WhatsApp. Dá pra sentir meu amor te envolvendo? Espero que sim.
Vou dizer também que vivi muitas primeiras coisas, entre elas:
Dançar sob o pôr do sol numa festa no barco em frente à Opera House
Acampar numa van no meio de um festival intimista de música eletrônica
Mergulhar por dias seguidos no mar gelado mesmo meu corpo gritando “VOCÊ ESTÁ LOUCA?” e depois sentir uma euforia deliciosa
Compartilhar a energia feminina com curiosidade e ternura en español, em português, in english. Te extraño, tô com saudade, I miss you.
Existe um jeito de guardar aquele nascer da lua em Bondi numa noite de primavera? De empacotar a serenidade das águas de Barangaroo e a alegria de um shift no Bar Copo? De, sei lá, encaixar a sensação dos abraços e das gargalhadas com os amigos nos fins de festa no meio do mato e na Oxford Street? O sabor do nosso matecito sagrado, a promoção do Ima Sushi, o oat latte do Clinton, a vista da Redleaf Pool. Os banquetes no 10/175 Victoria Road. Aquela manhã em Shelly Beach, quando eu e João nadamos com as águas-vivas mais brilhantes do oceano.
Sempre tive dificuldade em fazer as malas e dessa vez não seria diferente. As palavras não acompanham o ritmo e a desordem dos pensamentos (sentimentos) e esse tempo todo de atraso não foi suficiente pra eu saber colocar as memórias de um jeito organizado.
Além do mais, não paguei por peso extra... Vou puxar o zíper e fechar assim mesmo.
Mando notícias em breve, do Japão.
“Here I am, a bundle of past recollections and future dreams,
knotted up in a reasonably attractive bundle of flesh.
I remember what this flesh has gone through;
I dream of what it may go through.”
Sylvia Plath, The Unabridged Journals of Sylvia Plath
que lindo relato, Ma! costumo colocar músicas pra ler, e li seu texto ao som de Sigur Rós “Blóðberg”. quase chorei, confesso.
Que lindo. Os banquetes no 10/175 foram sim icônicos! E Deborah orgulhosa que insistiu pra você pegar essa último nascer do sol :)
Aproveita o Japão!