japonesa, eu?
talvez sim, mas nem tanto; sobre a primeira viagem à terra dos meus ancestrais
prólogo
A vista dos degraus do Sensō-ji, o templo mais antigo de Tokyo, é especialmente tranquilizadora ao entardecer. Cheguei num momento em que as dezenas de camelôs ao longo do corredor que conecta o portal da entrada até o templo estavam para fechar. Como se alguém regulasse o volume ambiente com um botão, as vozes dos comerciantes e turistas baixaram até não sobrar nenhum ‘irashaimase!’, nenhum ‘can you take a picture of me here please?’. Sento e olho ao redor. Uma imensidão de vermelho, uma história mais antiga do que eu possa tentar imaginar. Penso nas pessoas que usaram esse mesmo espaço centenas de anos atrás, tacos de madeira e quimonos e leques de papel.
Um homem senta ao meu lado, contemplando também. Tem os olhos puxados como os meus e está sozinho como eu. Puxo assunto, elogiando seus sapatos, e começamos uma conversa picada, dois estranhos tentando se entender numa língua que não é natural para nenhum de nós. Depois de algumas frases, ele cede ao tradutor do celular. Me mostra a tela com as respostas às minhas perguntas e perguntas às minhas respostas.
É interessante conversar assim, com pausas e mais tempo para esperar o que o outro tem a dizer. Silêncio. Luzes amarelas agora contornam os cantos arrebitados da pagoda à minha direita, o céu ganhando um tom escuro de azul. O homem ao me lado olha para o celular e hesita por um segundo antes de digitar. Vira a tela para mim: “don’t you feel lonely sometimes?”
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maio
Quando decidi vir ao Japão eu achava que sabia o que buscava. Algo a que me conectar, um fio que fosse, às minhas origens. Metade de mim vem daqui, mas o quão japonesa eu de fato sou?
Pensei no meu pai no terceiro dia de viagem. Entrei numa padaria pequena, de bairro, e passei os olhos pelas prateleiras. Pães de batata recheados com feijão azuki, sanduíches de ovo cozido, biscoitos de matcha. E ali, no meio disso tudo, um par de pães de cachorro-quente com salsicha e…queijo derretido. De todas as coisas japonesas do Japão que poderiam me fazer pensar no meu pai japonês foi uma salsicha - vina, em dialeto curitibano - com queijo derretido. Baque.
Num segundo não estou mais de férias em Osaka e nem tenho 30 anos; me equilibro na ponta dos pés, olhos vidrados na luz do microondas da cozinha em Curitiba. Biiiip. Tiro o prato quente que emoldura a vina coberta com uma única fatia de mozzarella borbulhante. “O papai Toshio adorava isso”, ouço minha mãe dizer.
Com seis anos de idade, dois anos depois de perdê-lo, é essa a forma de me sentir perto dele de novo: comendo algo que ele adorava, usando meu sentido preferido para me conectar às minhas emoções e ao meu luto. Não sou mais criança e faz muito, muito tempo que não como cachorro-quente (quem dirá vina com queijo), então você imagine minha confusão com as memórias sendo jogadas na cara no meio de uma padaria japonesa de bairro.
Depois disso, comecei a pensar nele em outros momentos da viagem.
Quando passava por homens esguios, de óculos e com corte de cabelo parecido com o que via nas fotos de infância, ou quando via pais e filhas em restaurantes. Me peguei imaginando se eu seria mais japonesa se meu pai não tivesse morrido tão cedo. Provavelmente. Para começar, acho que já teria ido ao Nihon, como fizeram minhas tias e primos.
Não seria novidade sentar sob o calor macio de um kotatsu enquanto dobrasse guiozas e comesse okonomiyaki, como fiz durante o couchsurfing com Erina-san em sua casa no interior de Shiga. Eu com certeza saberia fazer onigiri de olhos fechados e não precisaria pesquisar no Google as diferenças entre as dezenas de rāmens que existem por aqui. Talvez eu soubesse minimamente como me portar num sentō, a casa de banho pública presente em quase todos os bairros do país.
sentō
Foi na minha primeira noite em Kyoto, quatro dias depois da minha chegada. Caminhei menos de cinco minutos do hostel até o prédio de lajotas rosadas do Hakusan-yu Rokujo e hesitei antes de entrar.
Queria parecer saber o que estava fazendo; pensei que, se agisse com confiança, talvez passasse despercebida entre os locais - se tivesse pesquisado antes, poderia ter lido as dicas em inglês do site Kyoto Sentō, que além de mapear todas as casas de banho da cidade ensina o beabá da tradição (mas infelizmente não tenho nada em Virgem no meu mapa astral).
Tinha nas mãos uma bolsa de pano com a toalha do hostel, hidratante e uma muda de roupa íntima. Nem pensei duas vezes: abri uma das portinhas de metal no hall de entrada e enfei minhas coisas lá, depois guardei no bolso o pedaço de madeira que é usado como tranca - algo de uma engenhosidade admirável, vale dizer. Um senhor passou por mim e me olhou por dois segundos. Abriu a portinha dele, tirou de lá um par de sapatos, que os calçou com agilidade, e saiu em direção à rua.
Segui para a salinha da recepção e antes mesmo de lançar um konnichiwa animado, a recepcionista se levantou e engatou num japonês 5.0, apontando para a portinha de metal e para os meus sapatos em movimentos repetidos. “Ah, então esse é o armário para SAPATOS!”, disse em inglês, rindo envergonhada. “Sumimasen, ne”. Ela acenou freneticamente e só parou quando tirei a bolsa da caixinha.
Começamos uma conversa em mímica. Ela me pergunta se tenho toalha e sorrio mostrando o tecido felpudo. Errei de novo. Ela chacoalha uma toalhinha do tamanho de uma folha sulfite. Essas são as dimensões máximas permitidas ali, deduzo. Pago 600 yen pelo banho, sendo 100 deles para o aluguel da toalha certa (que serão devolvidos na saída), e sigo ao corredor feminino, indicado por uma cortina vermelha dividida ao meio.
O espaço é simples. De onde estou, ouço risadas masculinas e percebo que a parede que divide as salas das mulheres e dos homens não vai até o teto. Luz branca, dois apoios com espelhos e secadores de cabelo ao fundo, uma parede com armários para bolsas e itens pessoais (o que faz muito mais sentido ali) e, claro, uma vending machine cheia de garrafinhas de chá verde e refrescos de fruta.
A única coisa que diferencia o lugar de um vestiário de clube ocidental são as duas bacias plásticas cor de creme apoiadas numa pia de azulejos. Pra quê, não faço ideia. Tiro a roupa e tento cobrir o que dá com a toalhinha. Ao meu redor, mulheres de 30, 50, 80 anos caminhando nuas em pelo como se estivessem no banheiro de suas casas. Sigo uma delas pela porta, mantendo a estratégia de copiar o que fazem para não me sentir tão deslocada.
Uau. Estou num mundo à parte e nem adianta fingir costume. A sala de banho é enorme, com dezenas de espaços individuais para ducha ao longo das paredes. Em cada um deles, espelhos de um metro de altura e um banquinho de plástico côncavo, anatômico para as nádegas. Há frascos de xampu, condicionador e sabonete. No meio do salão, duas piscinas quadradas recobertas de azulejo claro convidam o corpo a relaxar na água quente.
Há mais quatro delas espalhadas pelo sentō, além de uma sauna, e percebo que as mulheres entram e saem da água como numa dança das cadeiras. Escolho o cantinho mais distante em busca do mínimo de privacidade e começo a me lavar com um pouco de vergonha, meio sem jeito. Fico hipnotizada pela conversa despretensiosa das senhoras enquanto se ensaboam, escovam os dentes e esfregam os cabelos, uma ao lado da outra, rindo e fofocando.
Devo ter passado uma hora ali, relaxando, mas principalmente assistindo àquilo tudo como se a cultura japonesa estivesse se despindo para mim pela primeira vez.
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Tadashi-san
O Google Maps me guia por ruas estreitas quando saio da estação Nakano-Sakaue em direção ao apartamento de Tadashi, o japonês que gentilmente me aceitou em sua casa por um par de noites. Já estou há três dias em Tokyo e sigo muito confusa com o sistema de transporte público. É tudo muito GRANDE e L O N G E .
Empurro uma mala de quase 20 quilos e uma mochila de pelo menos 12 nas costas. Chego esbaforida e suada, rezando para que o homem seja do bem e dizendo para mim mesma que vai dar tudo certo. Ele está em frente ao prédio me esperando. Não muito mais velho e não muito mais alto do que eu, Tadashi-san quase não fala em nossa primeira interação. Preciso baixar meu tom de voz normal porque o silêncio faz parecer que estou gritando.
Sua casa é… do tamanho de um quarto. Um passo para a direita e estou no banheiro, que tem dois passos de comprimento; outro para a esquerda e encaro a ‘cozinha’: uma pia e uma placa de indução que acomoda uma única panela. Um passo adiante e estou na sala/quarto. Uma cama de solteiro à esquerda e um futon à direita, com uma mesa de madeira redonda que bate nas minhas canelas.
Em que outro lugar do mundo eu aceitaria dormir a menos de um metro de um homem estranho?
Tadashi-san está bebendo whisky highball, o drink que vi em todo bar e restaurante no Japão. Mistura o destilado com gelo e água com gás em um copo alto e oferece a mim. Sentamos no chão e conversamos sobre coquetelaria, depois música, viagens, meditação e comida. “Fiz curry japonês para você. Aceita?”, me pergunta.
Quase choro à primeira colherada. O arroz e o molho castanho aveludado com pedaços de batata, cenoura e frango estão em completa harmonia na minha boca e eu me seguro para não fazer a dancinha da comida deliciosa porque mal conheço esse homem, apesar de já o considerar MUITO. “Eu coloco maçã e especiarias, também”, diz Tadashi, e eu sorrio sentindo a textura da fruta.
Terminamos o curry e bebemos mojito, depois vinho e mais um pouco de whisky. Ainda existe uma tensão no ar, típica de dois estranhos que precisam interagir. “Você gosta de karaokê?”, ele me pergunta. Digo que sim e seu rosto se ilumina num sorriso. Pega o celular, abre o aplicativo e é tarde demais. A melodia de Poker Face começa e nos atrapalhamos tentando murmurar os versos, aos poucos cantando mais e mais forte. Sinto vergonha, mas uma incredulidade curiosa me faz seguir em frente. Cantamos Rihanna, Ed Sheeran, Coldplay, Beatles. Quem é este jovem adulto tímido, solitário e que brinca de karaokê com backpackers em sua casa?
Na hora de dormir, saio do banho e vejo Tadashi-san de pijama mexendo em frasquinhos na cabeceira da cama. Ele me faz estender a mão e aperta um conta-gotas. “Pra hidratar”. Sorrio - a sensação de incredulidade curiosa continua - e aplico o sérum no rosto. Não acaba aí. Ele tira da geladeira duas máscaras faciais, me entrega uma e se senta na cama com as pernas cruzadas em pose de meditação, desdobrando o tecido branco com a destreza de quem faz aquilo sempre. Põe uma máscara de algodão sobre os olhos, diz que vai meditar antes de dormir e nem espera por uma resposta.
Silêncio. Sei que não devo, mas o observo por alguns segundos. Quem é este jovem adulto tímido, solitário e que faz skincare com backpackers em sua casa?
Acordo cedo. Já tem arroz feito e Tadashi-san prepara café, depois me mostra como se faz onigiri em 15 segundos. Não tem mais volta. Construímos um laço de anfitrião e hóspede e sei que a partir de agora tenho um amigo no Japão. Viajamos juntos para Saitama, onde fomos a uma fábrica de saquê e a um onsen incrível, e também para Kamakura e Enoshima, dois destinos que ganharam meu coração. Ele até tentou contato com uma parente minha de Hiroshima para me ajudar a recuperar algo da minha ancestralidade.
Ao fim de alguns dias juntos, entendi quem é Tadashi-san: um jovem adulto tímido que gosta de se conectar com viajantes pelo mundo, uma alma hospitaleira e gentil. Alguém com coração aberto para compartilhar.
Desculpe pela carta longa demais. É que essa viagem ao Japão foi tão intensa… Tanta experiência inédita que foi difícil escolher algo pra descrever do jeito que eu gosto - com paciência e espaço pra (tentar) fazer você sentir também.
Outro dia eu te conto sobre mais encantos do Nihon: Fujikawaguchiko, a cidadezinha onde me senti protegida o tempo todo pelo Fuji-san; a descoberta de missôs em Ginza; os rāmens históricos; a conexão inexplicável com o Gion, em Kyoto.
Outro dia eu te conto sobre como me senti mais japonesa do que nunca, mas mais brasileira do que qualquer outra coisa, também.
“It's hard to tell the difference between sea and sky,
between voyager and sea. Between reality and the workings of the heart.”
Haruki Murakami, Kafka on the Shore